A resiliência de uma militante que desde 1984 só
participa de passeatas em defesa de causas perdidas. “Não vou deixar de
sair e nem de falar”, diz Maria Soares, aos 94 anos
Nasci em Minas Gerais, numa fazenda no município de Além Paraíba, em 1924. Fui definitivamente para o Rio de Janeiro aos 25 anos, então me considero uma “mineiroca”.
Fiz um primário muito bom, porque foi uma experiência do Anísio Teixeira (educador brasileiro), na Escola Argentina. Naquele tempo, pouca gente procurava escola. E minha família não era muito politizada, mas foi lá e me matriculou.
Fiz um primário muito bom, porque foi uma experiência do Anísio Teixeira (educador brasileiro), na Escola Argentina. Naquele tempo, pouca gente procurava escola. E minha família não era muito politizada, mas foi lá e me matriculou.
Vivíamos mais no nosso canto lá em casa, tocando sanfona, dançando, alheios a tudo. Nossa família era muito religiosa e a única ligação que tínhamos com o mundo exterior era pela igreja. Víamos o comunismo como
um bicho-papão, tínhamos pavor. Mas um de meus irmãos, que morava no
Rio, se tornou comunista. Fui morar com ele e vi que não era nada do que
achava.
Na ditadura,
meu irmão esteve preso muitas vezes e eu estava sempre atrás dele.
Diziam que se ficasse em cima eles não o matariam. Devido a minhas
visitas, um coronel falou a meu irmão: “Dê conselho a sua irmã, porque desse jeito ela não vai longe”.
Meu irmão apanhou muito, ficou muito tempo na solitária e, quando minha
cunhada foi torturada, rompeu com o partido e largou tudo. Um tempo
depois ficou doente e morreu. Segurei a mão dele depois de morto e
disse: “Vou seguir sua luta”.
O primeiro partido que procurei foi o PCdoB, do qual meu irmão fazia parte. Como achei a doutrina muito rígida, não entrei. Depois fui ao MDB, mas também não quis. O terceiro partido foi o PDT. No estatuto havia uma cláusula que dizia que o quarto compromisso da sigla era com a população negra. Então falei: “Esse é meu partido”. E me filiei. Convivendo com Brizola,
passei a ter uma admiração muito grande por ele. Muita gente do PDT
estranha minha luta, me chamam de petista, mas não sou petista. Sou
brizolista. Não sou nem PDT, porque o PDT agora é outro, não é o PDT do
Brizola. Sou pela justiça.
A ditadura era uma época de muito medo. Participei
de muitas manifestações, porque mesmo antes da militância partidária e
da ditadura fui do sindicato dos enfermeiros, e a gente reivindicava
muita coisa. Mais tarde, na passeata das Diretas Já, caminhei ao lado da
Fernanda Montenegro e do marido dela. Foi uma frustração muito grande
quando perdemos.
A morte do Tancredo, eu não aceito até hoje.
Naquela época, os protestos movimentavam muita gente, gente do povo.
Hoje há muita gente se manifestando, não tanto quanto deveria, mas fico
animada por ver garotas jovens nos protestos. No início, minha filha e
minha neta quiseram me cercear, mas agora me deixam solta.
Depois de aposentada, já na democracia,
eu fiz o curso superior de Direito e me formei aos 71 anos. Prestei o
vestibular para as universidades públicas, mas, como não passei, prestei
para a particular. Lembro quando comecei a me preparar para o
vestibular, fui pegar meus livros antigos e eles diziam “se o homem pudesse ir à Lua…”.
Aí comprei uma turma de exemplares novos. Fiz um canto para estudo e
estudei em casa para o vestibular. Mas me decepcionei com o Direito. Vi
que não era tão direito assim. Muitas vezes, condenam um inocente, em
outras absolvem um criminoso. Não concordo com isso, gosto das coisas
corretas.
Esta fase agora é o coroamento de minha vida,
porque eu nunca soube ficar indiferente ao que passa a meu redor, nunca
consegui, sempre me manifestei. Entrei na defesa da Dilma devido a uma crônica que li na Folha . Achei muito cruel. Sugeria que Dilma fizesse como Getúlio (Vargas), que entrasse para a história dando um tiro no peito. Aquilo me abalou tanto que eu falei: “A gente tem de fazer alguma coisa por essa mulher”. Escrevi em uma cartolina “Respeitem o meu voto” e fui para a concentração na Candelária (no Rio).
Quando começou aquela época do verde e amarelo, eu achava que o PT
devia usar essas cores também. Fui à Rua da Alfândega e comprei 20
bandeirinhas do Brasil. Levei em duas passeatas e ofereci, mas as
pessoas me diziam “sou PT” e recusavam. Quando meu voto não foi
respeitado, me senti frustrada. Mas, como dizia Brizola, além das
forças que a gente conhece, há outros interesses contra o país. Achei
uma traição de Temer com a Dilma. Sempre saio de casa com o broche “Fora Temer”. E leio o jornal com caneta para rabiscar a cara dele. Comecei a rabiscar a cara do Bolsonaro, mas parei. Mesmo assim, quando leio “presidente”, pulo o nome para não pronunciar.
Aprendi que a gente cai e levanta. Eu sou muito
maleável. Há pouco vi um retrato do juiz Sergio Moro fazendo sinal de
silêncio. Aquela foto me abateu tanto, não só pelo dedo na boca, mas
pelo olhar ameaçador. Fiquei dois dias deitada. Um amigo me ligou. Disse
a ele que não iria a mais nada, que para mim tinha acabado. Estava
amedrontada e arrasada fisicamente. Meu amigo falou muito comigo. Fui a
um encontro de mulheres negras e desanuviou um pouco.
É preciso continuar a luta. O nazismo acabou. A escravidão “acabou”.
Aqueles flagelos de nos cortar todos e botar no tronco acabaram. Agora é
uma escravidão diferente, mas aquela braba mesmo, de nos pendurar na
forca, de dar uma criança para o filho do patrão bater, acabou. Depois
de muita luta de brancos e negros.
Sobre a eleição deste ano, a maioria acha que isso está certo, então vamos aceitar. Agora não sei o que nos espera…
Eu aprendo muita coisa. Como tive uma criação
religiosa, não aceitava a transição de gênero. Uma vez, na casa de um
sobrinho, havia dois travestis e eu disse “como ele aceita essa gente na casa dele?”. Hoje vejo com naturalidade. Mas ainda continuo com muitos costumes.
Nas passeatas, tem gente que fala palavras de baixo calão, e eu acho que não precisava disso. Em uma passeata gritaram “Eta, eta, eta, Bolsonaro quer controlar minha…” e dizia lá o nome. Eu cheguei e falei com uma senhora mais de idade: “A senhora acha correto isso?”, e ela disse: “O mundo hoje é outro, minha filha”. Aí eu botei o pé no chão e disse a mim mesma: “O mundo hoje é outro, Maria Soares”. Em outra passeata, gritaram “Nem recatada, nem do lar, estou na rua para lutar”. Eu não concordei. Uma pessoa pode ser recatada, do lar e ser de luta. Tem lugar para todo mundo.
Devido a ter me exposto tanto agora, com as ameaças do Bolsonaro, minha neta está doida querendo que eu saia do Brasil. Eu disse a ela: “Minha
filha, se eu morrer, já dei minha contribuição para o mundo. Não vou
para lugar nenhum, se alguém quiser dar o tirinho na minha testa, que dê”. Não vou deixar de sair e nem de falar.
A morte da Marielle me chocou muito. Era uma voz que defendia os direitos humanos,
que falava por nós, uma lutadora. Naquela passeata após o assassinato
dela, até me expus. Me botaram num caminhão e lá em cima me deram um
broche “Quem matou Marielle?”. Eu recusei e disse: “Não quero, eu sei quem matou Marielle”. Lá de cima do caminhão, falei: “Quem matou Marielle foi o sistema. Alguém que armou a mão daquele atirador para calar uma voz que defendia minorias”. E lembrei: foram os mesmos que mataram Chico Mendes, os mesmos que mataram Dorothy Stang.
Eu tenho medo, mas não por mim. Tenho medo por muita gente que luta. Aos 94 anos, a gente já perdeu muita coisa pelo caminho.
Fonte: Pragmatismo Político
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