Retirado algemado do show do Coldplay no Allianz Parque no último dia 7, Gabriel dos Santos Vieira virou uma espécie de celebridade instantânea depois que um post de sua amiga e advogada Helena Vasconcellos sobre o caso viralizou nas redes sociais, com quase 20 mil reações e 12 mil compartilhamentos.
A mobilização resultou numa corrente de solidariedade que permitiu ao personal trainer de 27 anos ver o tão esperado show em Porto Alegre dias depois. Mas isso é apenas uma pequena parte da história.
A mobilização resultou numa corrente de solidariedade que permitiu ao personal trainer de 27 anos ver o tão esperado show em Porto Alegre dias depois. Mas isso é apenas uma pequena parte da história.
Assustado com a repercussão do caso e abalado com as ofensas racistas que sofreu na delegacia, Gabriel não queria falar com a imprensa. Pedidos de entrevistas chegavam de todos os lados no inbox de sua advogada e o telefone não parava de tocar. Ele não queria nada disso. Mal conseguia trabalhar. Tinha vergonha. Não queria mais exposição.
Passada a tempestade, como ele mesmo define, Gabriel resolveu romper o silêncio. Voltou de Porto Alegre decidido a defender seus direitos e aceitou falar sobre o que aconteceu. Conversamos pelo whatsapp no decorrer da última quarta-feira. Foram dezenas de áudios nos quais Gabriel detalhou o que aconteceu na noite de 7 de novembro de 2017, uma noite que ainda está longe de acabar.
Como assinou um termo circunstanciado na 1ª Delegacia de Atendimento ao Turista de São Paulo, Gabriel terá de aguardar a investigação policial que poderá resultar ou não no seu indiciamento por desacato ou resistência à prisão, a depender do entendimento do delegado. Havendo indiciamento, o Ministério Público Estadual decide se oferece ou não uma denúncia à Justiça. O processo pode até vir a ser suspenso, levando em conta que o jovem não tem antecedentes e trata-se de um crime de menor potencial ofensivo. De toda forma, o trâmite pode levar até um ano para ser concluído.
Nas Corregedorias da Polícia Civil e da Polícia Militar, onde Gabriel registrou as ofensas e constrangimentos que sofreu durante a madrugada, os processos administrativos para investigar se houve crime de racismo, injúria racial ou abuso de autoridade podem levar ainda mais tempo. Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disse apenas que “houve registro da reclamação e todas as circunstâncias do fato estão sendo apuradas por meio de procedimento administrativo” na Corregedoria da Polícia Militar e que a Corregedoria da Polícia Civil também investiga o caso.
Confira a seguir os principais trechos da conversa com Gabriel Vieira.
O que aconteceu no show antes de você ser abordado pela polícia?
Cheguei umas 20h30, a gente ficou sabendo que o show ia atrasar um pouco, ia começar às 9 depois passaram para as 10 horas. Eu trabalho ali do lado do estádio do Palmeiras, na região de Perdizes. Saí do trabalho por volta das 7, passei no Outback, comi e tal, e daí quando cheguei ainda estava tendo o show de abertura. Enquanto eu tava assistindo esse show, já na escada, porque eu e meus outros três amigos não conseguimos lugar e outras pessoas já estavam se acomodando na escada, duas meninas vieram até mim falar: “Moço, na boa, cê não vai ficar na nossa frente na hora do show do Coldplay”. Elas me abordaram de uma forma que eu até achei engraçado, eu achei que elas tavam zoando, porque eu sempre vou em show, teatro e as pessoas falam “pô, cê vai ficar na nossa frente com esse tamanho todo” (Gabriel tem 1m89 de altura). Eu ainda levo numa boa, então achei que elas tavam falando nesse sentido. Ainda falei: “Mas quando começar o show vocês vão ficar em pé, né”. Porque eu não tava ocupando o espaço delas. Tratei como brincadeira. Virei e fiquei tirando foto, mandando pros meus grupos, porque no ano que vem eu vou no show do Foo Fighters e fiquei mandando foto pros meus amigos: “Ó, quando a gente vier no Foo Fighters nossa visão vai ser mais ou menos essa, porque é o mesmo setor”. Então, nem dei muita bola pras meninas. Aí deu uns cinco minutos, chegou um rapaz que tava organizando o espaço e ele falou pra geral: “Turma, só vamos se organizar aqui na escada, fica mais próximo do corrimão porque aqui é uma saída de emergência pros bombeiros passarem, então não ocupem a escada inteira”. Então todo mundo ficou meio de canto, algumas pessoas saíram, mas ok. Depois que já tava rolando o show, eu assisti cerca de 45 minutos do show. No meio do show, chegou outra mulher de colete já me abordando diretamente: “Vou pedir pro senhor sair da escada porque estão reclamando que o senhor está atrapalhando a visão”. Só que eu tava numa boa como uma monte de gente na escada. Ela me deu o recado e saiu andando. Eu fiquei com uma interrogação na cabeça porque tinha um monte de gente na escada. Logo em seguida veio o policial me abordar, falando que eu estava causando algazarra ou atrapalhando o espetáculo por estar em pé na escada, eu questionei ele: “E quanto às outras pessoas que estão aqui também, eu só tô em pé assistindo o show”. Aí ele já foi me puxando: “Eu vou ter que tirar o senhor daqui”. Eu falei: “eu não vou, senhor, eu paguei o ingresso”. Ainda tentei tirar o ingresso do bolso para mostrar, estava com as pulseiras nos dois pulsos piscando. Eu falei: “não vou, eu tô curtindo o show igual às outras pessoas”. Ainda apontei pra trás, só que não teve jeito, e daí o policial me arrastou. Não houve vaias do pessoal, não houve manifestação do público, pelo contrário, aconteceu de três pessoas do público saírem atrás de mim tentar me defender enquanto os policiais tentavam me algemar.
Mais alguém foi retirado do local?
Além de mim, ninguém foi retirado do local. Ninguém, apenas eu. Coincidentemente ou não, aí as pessoas usam essa informação da forma que quiser, mas coincidentemente ou não o único a ser retirado fui eu, e aí já abre um leque para várias interpretações. Os três policiais que me abordaram não dirigiram nenhuma palavra de teor racista, usaram força demasiada, talvez até desnecessária, mas não usaram palavras de teor racista. A partir dali, que eu fui levado até um espaço do estádio para onde estavam levando pessoas que tinham sido presas por algum motivo, a partir desse momento que eu entrei nessa sala até o momento que eu saí da delegacia, eu sofri vários comentários racistas, ameaças, que só no julgamento, perante um júri que eu vou declarar.
Como você ficou sabendo da repercussão do caso nas redes sociais?
Helena é amiga da minha namorada, ela estava na delegacia comigo, chegou por volta das 2h da manhã, meus amigos também. Fiquei sabendo do post na verdade dois dias depois, e, cara, tomou uma proporção gigantesca, eu não imaginava e nem queria que isso fosse acontecer, porque eu morro de medo de exposição, principalmente numa situação dessas. Mas quando aconteceu tudo isso eu tomei um susto e a primeira coisa que eu pensei foi na minha família. Pensei: “Putz, vou ter que contar pro meu pai, pra minha madrasta, pra minha irmã, pra eles não ficarem sabendo pela internet”. Porque é uma notícia muito impactante. Eu nunca fui preso, não tenho passagem na polícia, quem dirá ser algemado. Eu fiquei assustado por conta disso. E internet, o tribunal das redes sociais é muito agressivo, tanto pro bem quanto pro mal, a gente nunca sabe quem tá do outro lado da tela do celular. Isso me assustou em função do meu trabalho, porque eu sou personal trainer, trabalho com pessoas, com meu corpo, então eu batalho o máximo pra zelar pela minha imagem.
E como foi a mobilização para te levar para o show em Porto Alegre? Isso te confortou de alguma forma?
Não sei quando começou a corrente, porque elas fizeram tudo pelas minhas costas. Virou uma teia de amigo do amigo do amigo que ajuda e compartilha. Foi muito doido. O fato de eu ter ido para Porto Alegre amenizou muito a dor, porque de terça a sexta à tarde eu só conseguia chorar, porque eu tava passando por várias situações que eu nunca tinha passado na minha vida. Meu, na terça depois do show, eu passei a madrugada inteira na delegacia, então foi muito desgastante. Daí cheguei em casa com minha namorada de madrugada, a gente dormiu quatro horinhas e voltou para a delegacia para pegar cópias dos BOs para conseguir ir na Corregedoria da Polícia Militar e Civil. Aí na madrugada de quarta a gente passou a madrugada nessas corregedorias. Na quinta eu não consegui trabalhar ainda abalado, e tinha vergonha, porque todo mundo já sabia, tinha estourado na internet, então foi bem punk. Mas aliviou bastante a dor, porque fica esse ar de conto de fadas, deu a volta por cima, teve um desfecho feliz, mas não é um desfecho feliz que eu quero como o que sofreu o ato, a agressão, eu quero um desfecho justo. Então as pessoas confundem, muitas pessoas acham: “nossa, que bom, ele sofreu o racismo, mas pelo menos ele conseguiu ver o Coldplay”. Pra mim, na verdade, se eu não tivesse conseguido ver o Coldplay eu só estaria mais na bad ainda, hoje eu teria remoído, mas aquilo foi uma válvula de escape. Acabou o show, eu voltei para minha casa com a cabeça fresca, relaxada e pronto para correr atrás dos meus direitos. Meu discurso não é punir ninguém, mas eu quero que as pessoas envolvidas sejam responsabilizadas pelo que aconteceu comigo para que tomem ciência de que foi um ato injusto.
Você já tinha passado por uma situação parecida?
Já passei várias vezes por algumas experiências de abordagens policiais normais. Eu trabalho ali na região de Perdizes, perto do estádio do Palmeiras, enquadro ali é normal eu tomar. Eu costumo dizer que pelo menos uma vez por semana eu tomo um enquadro. Que eu vou tomar um enquadro todo mês é certo. Mas sempre foi tão tranquilo, tão de boas. Quando eu vejo que vou tomar um enquadro eu já vou botando a mão na cabeça, pegando meus documentos. Nunca dura 7 ou 10 minutos porque eu já sei como é. Sofrer racismo eu já sofri, mas dá pra contar nos dedos quando sofri racismo descaradamente. Há muito tempo atrás eu tava dando aula num clube, eu dava aula de natação para bebês, e aí um pai não gostou que eu tava segurando a filha dele, isso daí foi o mais descarado. No resto foi meio que o preconceito mais velado numa brincadeirinha, numa piadinha ou no trânsito, essas coisas que acabam sempre passando. E meu bairro (em Barueri) é uma região periférica, então é de praxe isso acontecer.
Fonte: Agência Pública
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