Geralmente, são indivíduos que estavam em cargos profissionais reconhecidos como altos ou de prestígio, que significa bons salários, estabilidade e, claro, poder. O que nunca se fala nesses artigos é o que significa “chutar o pau da barraca” e qual é a contribuição disso para aprofundar uma falsa percepção de liberdade dentro do mundo do trabalho.
A começar precisamos falar um pouco desse universo.
O universo do trabalho, no contexto do capitalismo financeiro neoliberal, é um espaço marcado pela lógica da competição e da exclusão. Sim, exclusão. Os critérios que mantêm os indivíduos dentro desses espaços são quase tão obscuros quanto os que mantêm longe dele, e isso tem muito a ver com a forma como o neoliberal adentrou nas diversas esferas dos indivíduos para além do que ele deve ou não executar em seus cargos assalariados.
Suas escolhas, movimentos, decisões, o que faz de hobby, cursos, interesses e redes sociais: tudo se torna um elemento que é absorvido e incorporado à lógica que sustenta o curriculum vitae destes indivíduos e os transformam em seres empregáveis.
Quem disse isso não foi eu, e sim o belo trabalho da socióloga Silvia Viana, “Rituais de Sofrimento”, que compara sofisticadamente a lógica dos realities shows (como Big Brother).
Sofrimento é a palavra que marca a essência dessa dinâmica: uma insegurança constante diante das regras cada vez mais abusivas, falta de garantias e direitos, e, para brindar, um discurso de nivelamento perverso mas eficaz: da meritocracia como “critério de existência”.
Veja o exemplo do reality show Masterchef, para ficarmos em um mais atual. Os chefes gritam o tempo todo, o programa cria rivalidade entre os concorrentes (seja pela dinâmica das provas, seja na edição), e no fim enfatizam que tudo é para o aprendizado e crescimento pessoal. O discurso desse programa e de tantos outros, favorece que no mercado de trabalho comportamentos abusivos sejam naturalizados somados ao discurso de força e mérito do “bom trabalhador”, que é aquele que na verdade resiste às práticas de abuso.
A esses rituais de sofrimento podemos somar outras duas características presentes nesse mesmo mercado, consequência direta da ampliação da lógica neoliberal na forma como indivíduos conduzem suas vidas: a emergência do sujeito-empresarial e norma da competitividade como regulador das interações sociais. Quem disse isso também não foi eu, e sim os pesquisadores franceses Pierre Dardot e Christian Laval.
Sobre sujeito-empresarial, o nome é quase auto-explicativo: cada indivíduo se vê como uma empresa, e nesse sentido, sua empresa deve conter as marcas diferenciais em relação a outras empresas. Esse diferencial geralmente está voltado aos elementos aglutinados em torno do indivíduo, e se torna a primeira forma de cooptar das outras esferas da vida tudo que pode servir como formas de distinção no mundo do trabalho.
Não é sobre como e quanto você pode executar determinada atividade, mas como tal viagem ou uma língua adicional ou mesmo uma meditação (que torna você mais paciente e receptivo em relação às pessoas) te faz um sujeito mais selecionável que outro.
A ideia de seleção (que só existe perante o estrutural e constante fantasma da exclusão) também orienta a característica da competitividade como norma das interações. Todos podem ser excluídos, mas você deve assegurar de qualquer maneira que não seja você desta vez. Tudo que pode ser usado contra o outro – desde os comentários, análises de desempenho, táticas de vigilância e controle, ou mesmo a fofoca e os assédios – se tornam ferramentas utilizadas para operação da competição, e dentro dela, para o indivíduo satisfazer sua angústia em garantir que “dessa vez não foi eu quem caiu…”.
É muito perverso que todas essas práticas venham se aperfeiçoando conforme se foi tendo acesso a políticas afirmativas para negros. Exige-se mais de um profissional, e isso está muito mais ligado ao que ele pode oferecer a empresa, do que a empresa pode oferecer a ele. Mesmo que ele seja, de fato, o elo mais fraco nessa relação.
O significado diante “largar tudo e seguir seus sonhos”, nesse sentido, conversa diretamente com tais rituais de sofrimento presentes no dia a dia do universo do trabalho. Ele se torna uma aspiração ao indivíduo sofrente, uma forma de apaziguar seus medos e vontade de não fazer mais parte daquele sofrimento de ter que investir sem saber se, mesmo assim, vai cair no próximo jogo. Ao mesmo tempo que se torna uma nova forma e elemento de distinção dentro do próprio jogo:
Indivíduo que pode e consegue chutar o balde é aquele que se encontra mais próximo das regras que compõem o jogo, e portanto menos vulnerável (em termos de sensação) às angústias produzidas pelo sofrimento que é estar no mercado de trabalho contemporâneo – muitas vezes porque é o mesmo que encampa e defende severamente a ideia de meritocracia e de seu lugar singular dentro daquele universo.
O que, portanto, ninguém fala é que, além de ser para poucos, a lógica do “largar tudo e…” é apenas uma forma de reforma das próprias dinâmicas desse mesmo mercado.
Não se trata de abandono, tão pouco de transformação. E olha que nem estou contando com a quantidade dessas pessoas que acabam, depois de fazer sua viagenzinha internacional (geralmente para algum exótico e nisso; leia-se: com muitos não-brancos, pois até nas escolhas de viagem existe um ar colonizador), abrindo um negócio [start-up] e novamente ganhando a partir da incorporação daquela “experiência singular”.
É sobre reprodução de uma desigualdade presente entre aqueles que vivem os rituais de sofrimento mas os ressignificam dentro de uma lógica do discurso do mérito e do propósito, de modo a se afastar das condições que são materialmente necessárias para manutenção de outro contingente, que também está sujeito às regras dos rituais do sofrimento, no entanto dependem mais dos direitos garantidos dentro daquele jogo, e são vítimas diretas do mesmo discurso sobre mérito e propósito.
É preciso alterar os sujeitos e as condições nas quais as regras de sofrimento estão em vigência, para assim conseguir transformar a realidade dessa angústia que acomete a todos, seja os que estão dentro e principalmente o grande contingente que está fora desse mercado – sujeito às inseguranças cruéis do jogo, sem no entanto tomar parte ativa nele.
Diante disso, o que significaria, de fato, chutar o pau da barraca? Investir na contratação e absorção de pessoas fora do seu nível social e cultural. Apoiar políticas distributivas e de correção de desigualdades historicamente consolidadas baseadas em raça, gênero, territorialidade e sexualidade. Apoiar legislação segura e justa acerca dos direitos trabalhistas, previdenciários e tributários, considerando as necessidades específicas dentro das questões de pertença de gênero, raça, etnia, territorialidade, habilidades especiais e sexualidade, entre outros.
Em suma, chutar o pau da barraca é enterrar por terra a ideia de meritocracia, que está implícita nas empresas que odeiam carteira assinada, que só contratam funcionários que são todos da mesma escola e universidade, que acha que horas extras não devem ser pagas e que se colocam como “fora da norma”, mas não possuem um negro no seu quadro de funcionários, pois inclusive as faxineiras são terceirizadas.
É essa meritocracia que impede ascensão e inclusão de sujeitos que são a base da sociedade, um hábito que está da startup a empresa mais tradicional, que temos que largar tudo, e buscar nosso propósito de igualdade e liberdade.
Fonte: Justificando
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