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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Um olhar para os realizadores negros

Em uma Mostra de Cinema de Tiradentes politizada e engajada, diretoras e diretores negros estão mais no jogo do que nunca
O cinema é feito de escolhas. Essa é uma das provocações feitas em cartazes na fachada do Cine Tenda na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes. No interior da sala, ao lado da tela, a convocação “O Cinema é nosso”. E “Ocupe as telas” se mistura com a logo da mostra.

Este ano, a programação, sob a temática ‘Corpos Adiante’, traz 29 filmes de realizadores e realizadoras pretas e pardas, que representam 15,4% do total de obras exibidas na mostra. Um número significativo, mas que ainda não dá conta da complexidade das marcas da colonização. Em 2016, a Ancine divulgou dados que mostraram que dos 142 longas lançados comercialmente naquele ano, 75,4% foram de diretores homens brancos e 19,7% de mulheres brancas. Os homens negros dirigiram 2,1%, e as mulheres negras não assinaram a direção de nenhum dos filmes.
O cinema é feito de escolhas. Essa é uma das provocações feitas em cartazes na fachada do Cine Tenda na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes. No interior da sala, ao lado da tela, a convocação “O Cinema é nosso”. E “Ocupe as telas” se mistura com a logo da mostra.
Este ano, a programação, sob a temática ‘Corpos Adiante’, traz 29 filmes de realizadores e realizadoras pretas e pardas, que representam 15,4% do total de obras exibidas na mostra. Um número significativo, mas que ainda não dá conta da complexidade das marcas da colonização. Em 2016, a Ancine divulgou dados que mostraram que dos 142 longas lançados comercialmente naquele ano, 75,4% foram de diretores homens brancos e 19,7% de mulheres brancas. Os homens negros dirigiram 2,1%, e as mulheres negras não assinaram a direção de nenhum dos filmes.
Apesar da Mostra de Tiradentes trazer um recorte de filmes menos marcados pela comercialidade e alcançar um contexto do cinema contemporâneo independente, é preciso considerar como as questões estruturais refletem na produção cinematográfica como um todo. E, especialmente, é urgente pensar de que modo esses espaços podem viabilizar fissuras, por meio de suas temáticas curatoriais, debates e discussões.
Os filmes feitos por realizadores pretos possibilitam a expressão nas telas de desejos e tentativas fora da curva de um cinema que ainda é marcado por padrões hegemônicos protagonizado pelos mesmos tipos de artistas, em gênero, etnia e olhares.
As escolhas de André Novais, Yasmin Thayná e Desali
Aqui, em Tiradentes, conheço a cidade e a mostra de cinema pela primeira vez e volto meu olhar para essas produções em especial. Conversei com André Novais Oliveira, diretor do filme Temporada, exibido na Mostra Homenagem no dia 19 de janeiro; com Warley Desali, diretor do filme Trabalho, exibido na Mostra Foco Minas no dia 20 de janeiro; e Yasmin Thayná, diretora do filme Fartura que será exibido na Sessão da Mostra Formação no dia 26 de janeiro. Palavras para pensar olhares, para falar das escolhas e ouvir sobre de onde vem o cinema feito por eles.
Em comum, de todas as escutas temos as bordas, o cinema que vem das margens. André e Yasmin falam de seus territórios-vivências Contagem e Nova Iguaçu. “A questão geográfica é muito importante, não só para mim, mas todos os diretores da Filmes de Plástico. Três diretores de Contagem, cada um falando do lugar de onde nasceu e cresceu”, disse André, que reforça também as referências de cinema autoral e simples pautado por questões do cotidiano que intermediam o modo de observar lugares.
“Faço a escolha de mostrar pessoas que não são muito retratadas ou retratadas com estereótipos. E lugares que não são retratados e quando são trazem um olhar antropológico”, acrescenta André.
“Acho que tudo que eu fiz até hoje, vem de um lugar físico, geográfico, específico. Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. As coisas partem muito dali, do que eu vi, do que vejo, do que vivo. Tem muito disso no meu trabalho, do lugar da vivência e da possibilidade que essa vivência tem de nos transportar para outros lugares. Olhar o que tem aqui, o que me interessa o que me impulsiona a ir atrás pensar, ficcionar”, contou Yasmin.
Para ela, esse lugar também traz em si outras multiplicidades. “A memória é uma coisa muito presente também na forma de realização, não só do meu filme, mas na realização negra em geral. Percebo que nos filmes de cineastas negros, a memória está muito presente, as individuais e as coletivas, especialmente. Partilha de experiência coletivizadas. Lembrar é uma forma de começar um filme, comer também, andar na rua, ouvir os sons. Minha referência está na rua.”


Desali foto: Isabella Leite
Foto Beto Staino/Universo Produção

Desali, que também é artista plástico e lançou seu primeiro filme – o curta Trabalho – num espaço de cinema na Mostra de Tiradentes, apresenta também as referências de um lugar. Gravado no Jardim Canadá, o filme é um contato com as margens da cidade apresentando trabalhos, trabalhadores, movimentos de construção e textos curtos para falar de um processo social de negação ou ocultamento do fato de que a edificação de cidades, prédios, estradas é executada por pessoas. “Fomos nós quem construímos tudo isso e existe essa negação. O filme é uma reação a essa negação”, reforça.
“Eu entendo como demarcação de um território de uma espacialidade que me pertence e pertence às pessoas que convivem comigo. E também pensar em como isso está distante desses lugares institucionais, como as galerias e o cinema”, aponta o artista que viveu por muitos anos em Contagem.
O cinema é nosso. Ocupe as telas
Na reflexão sobre como o cinema feito por pessoas negras é percebido no contexto atual, tanto Yasmin quanto André me contam da observação de um processo de mudança, a própria presença mais efetiva dos filmes e dos corpos nos festivais aponta para uma fissura.
“Nos últimos anos têm tido uma certa descentralização. E tem tido aos poucos, uma certa identificação das pessoas de centro em determinados filmes. É o caso dos filmes feitos em periferia, que falam da periferia, com muito respeito e cuidado, e feitos por pessoas de lá mesmo. Há uma tentativa de diferença do olhar e que traz um processo de identificação também das pessoas da periferia com o cinema”, comentou André.
“Três ou quatro anos atrás, Tiradentes tinha rejeitado o KBELA. Eu percebo que está rolando uma mudança muito grande. Não tenho isso em números, mas acho que nunca se exibiu tantos filmes de realizadores negros em festivais de cinema. Eu acho que isso tem muito a ver com a curadoria e a forma de ver uma obra como filme, ou uma realização como uma obra. Eu acho que isso colaborou para que esses festivais mudassem a forma de perceber o que é cinema, o que são narrativas possíveis de estar nos festivais”, acrescentou Yasmin.
KBELA é primeiro filme da Yasmin Thayná, no qual ela discute discriminação racial e de gênero a partir da estética, mais especificamente do cabelo das mulheres negras. O curta foi premiado como melhor curta da Diáspora Africana da Academia Africana de Cinema em 2017.
“Eu lembro que a gente era muito alvo de piada, do tipo ‘ah, mas você não faz cinema, essa sua experiência é muito bacana mas não está no cinema, porém usa de uma linguagem cinematográfica’. Então, era sempre um não lugar, lugar do não-cinema, parecia que faltava muito para fazer cinema. Eu acho que tinha esse lugar de deboche também: os militantes que filmam, os militantes que fazem filmes panfletários, os militantes que tentam fazer filme. Posso estar otimista, mas acho que melhorou um pouco”, avaliou a diretora, que chamou atenção para a necessidade de levar as obras para mais público.
“É um momento importante de território e também para fazer a gente pensar. Sobretudo em como fazer esses filmes serem vistos, para além do circuito independente”, sugeriu.
Desali aponta o momento, sobretudo, pela potência do encontro, da observação do que vem sendo produzido pelos realizadores negros. “As imagens que são mostradas, a forma como são mostradas permitem que a gente se sinta fazendo parte. Ver as pessoas subindo ao palco e o público também é algo bom. Uma pequena parcela que observava ou era observada agora está ativando esses espaços também”, destaca.
Para ele a necessidade é o gesto o tempo todo. “Precisamos sair dessa forma desse autor também e criar conexões. Ser não só um ‘construindo’, mas construir juntos, marcando esse espaço e tempo integralmente, essa nova espacialidade e identidades que sempre existiram e que sempre foram negadas, inclusive nas possibilidades de partilha um com o outro, com os nossos.”
Premiação
Foram várias sessões, encontros e conversas sobre os filmes com amigos e com realizadores. Ao final, acompanhei a premiação orgulhosa e feliz pelo curta NEGRUM3, com direção de Diego Paulino, ter recebido o prêmio de Melhor Curta pelo Júri Popular e o Prêmio Canal Brasil de Curtas e, também, pelo Prêmio Helena Ignez de destaque feminino para Cristina Amaral, pela montagem de Um filme de Verão.
Em sua fala de agradecimento, Diego dedicou o prêmio a memória de Marielle Franco, Mateusa e outros corpos negros que estão sendo massacrados no processo de diáspora e reforçou a continuidade da luta, resistência e ocupação dos espaços, dizendo: “Estamos vivos!”. Sim. Estamos.
Termino esse texto com o convite para mais mergulhos nos filmes de realizadores negros. Um convite à ousadia.
*Quero agradecer as pessoas que colaboram para existência desse texto em especial: André, Yasmin e Desali. Abraço apertado: Camila Bahia Braga, Tatiana Carvalho Costa e Rafael Mendonça. Aos realizadores negros que exibiram filmes na Mostra meu agradecimento e carinho.
Fonte: O Beltrando

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