A Ribeira das Naus, à beira do rio
Tejo, local que no passado foi o epicentro do comércio de pessoas escravizadas
na metrópole do Império Português, receberá a partir do próximo ano um memorial
às vítimas da escravatura.
Orçada em 100 mil euros (aproximadamente R$ 388 mil), a construção do monumento foi apresentada pela Djass Associação de Afrodescendentes e aprovada pela população lisboeta com 1.176 votos na proposta do Orçamento Participativo de 2018.
Orçada em 100 mil euros (aproximadamente R$ 388 mil), a construção do monumento foi apresentada pela Djass Associação de Afrodescendentes e aprovada pela população lisboeta com 1.176 votos na proposta do Orçamento Participativo de 2018.
O projeto surgiu de uma articulação
da sociedade civil ligada ao movimento negro e de afrodescendentes como
resposta à omissão do Estado português em relação ao seu passado colonial e
escravagista. Apesar do papel central que desempenhou no comércio internacional
de escravos, Portugal ainda demonstra dificuldades em lidar com este legado
histórico — chama a atenção, por exemplo, o fato de que a capital do país não
tenha, até hoje, um memorial ou museu em homenagem aos milhões de africanos
escravizados ao longo de quatro séculos. Em Portugal, há apenas um pequeno
museu dedicado à escravatura em Lagos, na região do Algarve.
“É uma grave e incompreensível lacuna
que o Portugal do século XXI não assuma o seu passado com tudo o que ele
encerrou. É notório que há uma recusa do Estado Português em reconhecer a
escravatura como parte central do seu passado e os seus legados históricos,
designadamente o racismo, como parte do seu presente”, avalia com exclusividade
ao Por dentro da África Beatriz Gomes Dias, presidente da
Djass. “Foi por sabermos isso que avançamos para a apresentação desta proposta.
Se o Estado não promove esse reconhecimento histórico e essa homenagem às
pessoas escravizadas, teriam de ser os cidadãos a fazê-lo”, afirma.
O monumento, prevê Beatriz, ajudará a
promover um debate importante e necessário, capaz de colocar a sociedade e o
Estado português frente a frente com sua própria história e com seu presente.
“Foram seis milhões de pessoas que
Portugal traficou a partir do continente africano, é um verdadeiro Holocausto
que hoje, enquanto democracia moderna e consolidada, deveríamos reconhecer sem
hesitações. Não enquanto autoflagelação nacional, mas como ato coletivo de
reconhecimento e de reparação. Reconhecimento do papel central que Portugal
desempenhou neste hedionda prática que foi a escravatura e o tráfico de pessoas
escravizadas, reconhecimento da resistência e da luta contra a escravatura que
foi sempre protagonizada, ao longo dos tempos, pelas africanas e africanos,
reconhecimento das continuidades históricas que fizeram com que a opressão da
escravatura tivesse sobrevivido até hoje, manifestando-se de novas e diferentes
formas, do trabalho forçado que se seguiu à sua abolição, perdurando até à
democracia, ao racismo estrutural que permeia a sociedade portuguesa”, avalia a
presidente da Djass.
Apesar da sua natureza eminentemente
simbólica, o memorial servirá não apenas para assegurar a homenagem às vítimas
da escravatura — seu objetivo principal –, mas poderá também contribuir para
alargar e aprofundar o debate sobre a História portuguesa e a relação desse
passado com as formas de racismo que ainda se manifestam na sociedade. Poderá
também ser um primeiro passo para a criação, no futuro, de um museu dedicado ao
colonialismo e à escravatura.
“Há que olhar de frente para o nosso
passado, questionar as nossas respostas e combater a história única. Sabemos
que é um debate difícil, porque confronta uma narrativa hegemônica sobre a
História de Portugal, que se consolidou ao longo de séculos e que, em grande
medida, invisibiliza a violência e opressão perpetradas pelo império colonial
português, ao mesmo tempo que veicula visões romantizadas, de pendor
lusotropicalista, da excepcionalidade do colonialismo português, promovendo
Portugal como o campeão da miscigenação e do encontro benigno de culturas”, avalia
Beatriz.
Escolha participativa
Apesar de a apresentação da proposta ao Orçamento
Participativo de Lisboa ser relativamente simples, não foi um processo isento
de sobressaltos. A ideia de construir o monumento às vítimas da escravatura foi
inicialmente rejeitada pela comissão de avaliação e só foi aceita após recurso
da associação proponente.
Durante as cinco semanas em que
decorreu o período de votação — feito pela internet e através de telefone
celular por meio de SMS –, a Djass percebeu que o interesse à proposta ganhou a
adesão de grande número de pessoas. “Fizemos um esforço significativo de
divulgação do projeto, não apenas nas redes sociais, mas igualmente nos eventos
que realizamos ou nos quais participamos e através da distribuição de material
informativo na rua. Contamos também com o apoio de diversas organizações e
pessoas que fazem parte ou estão próximas do movimento negro e antirracista na
divulgação do projeto”, relata Beatriz. “Por estes motivos, estávamos
otimistas, mas não contávamos com uma votação tão expressiva. Estamos muito
felizes e muito gratos a todas as pessoas que apoiaram este projeto”.
O concurso para concepção do projeto
e a construção do memorial ficará a cargo da Câmara Municipal de Lisboa, com
recursos orçamentários da cidade. A Djass, no entanto, pretende acompanhar de
perto, com o apoio de pessoas e organizações de afrodescendentes e de
africanos, para garantir que a sua execução fique a cargo criadores africanos
ou afrodescendentes, tal como constava na proposta submetida ao orçamento
participativo.
Também não é possível definir ainda
uma data para a conclusão do projeto, atribuição que caberá à Câmara Municipal
de Lisboa. Porém, como se trata de projeto com verba prevista no orçamento de
2018, provavelmente sua execução terá início no próximo exercício fiscal do
município.
Além do memorial, outros 14 projetos foram aprovados. A
administração municipal de Lisboa disponibiliza 2,5 milhões de euros (R$ 9,5
milhões) para executar as propostas escolhidas pelos moradores da capital
portuguesa. No total, 128 propostas concorreram e recolheram um total de 37.673
votos.
Fonte: Por Dentro da África
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