Um grupo de pelo menos 500 imigrantes está na região de Assis Brasil, com a intenção de deixar o Brasil por via terrestre. Na quarta (24) chegou ao município mais um ônibus com 60 imigrantes. O roteiro é semelhante dos que já estão na região há mais tempo: eles chegaram ao estado de avião, desembarcam na capital Rio Branco e seguem de ônibus para Assis Brasil (último ponto brasileiro da fronteira).
A maioria do grupo é composta por pessoas de nacionalidade haitiana, mas também há representantes de outras nacionalidades. Segundo dados da Caritas Dioecesana de Rio Branco, ao menos 40% dos imigrantes que estão em Assis Brasil são mulheres e crianças.
A maior parte está em dois abrigos improvisados dentro de escolas públicas no município. De acordo com a Pastoral do Migrante local, há também 80 pessoas dormindo na rua e 70 acampadas na Ponte Binacional que liga a cidade acreana a Iñapari, já no lado peruano, como forma de protesto.
Com o fechamento da ponte, caminhões dos dois lados da fronteira não conseguem passar. O protesto gera grande insatisfação por parte dos motoristas, que temem prejuízos com as cargas paradas e querem a reabertura da via.
Pessoas que acompanham a situação na fronteira ouvidas pelo MigraMundo temem que ocorra um conflito na região, caso a insatisfação alcance níveis mais altos.
Em razão da pandemia, muitos imigrantes perderam seus empregos e passaram a enfrentar dificuldades financeiras no Brasil – que também vive mau momento na economia, agravado pela Covid-19.
Diante desse cenário, mesmo com as fronteiras fechadas, alguns decidem apostar em uma nova migração para tentar obter melhores condições de vida em outro país.
Essa jornada, que já é complicada em circunstâncias normais, se torna ainda mais penosa, complexa e perigosa diante da Covid-19. Para tentar frear a disseminação do vírus, países em todo o mundo vêm fechando fronteiras e adotando critérios cada vez mais severos para admitir pessoas de outros países em seus territórios.
Como resultado, os imigrantes que tentam sair do país para seguir viagem por outras nações do continente vivem uma situação de limbo. Possuem pouco ou nenhum dinheiro para se manter no Brasil, ao mesmo tempo que não conseguem passar para outros países. Ao mesmo tempo, ficam ainda mais suscetíveis ao contágio pelo novo coronavírus.
As fake news também possuem uma parcela de culpa pela situação na fronteira. Correm entre os imigrantes boatos de que as fronteiras do Peru e dos Estados Unidos estão abertas, o que encoraja muitas pessoas a venderem tudo na esperança do “sonho americano”.
Um comunicado em creole haitiano, escrito pela Defensoria Pública da União (DPU), já circula entre grupos de WhtsApp acessados por imigrantes e visa conscientizar sobre os riscos de tentar sair do Brasil no momento.
Alguns, inclusive, já decidiram fazer o caminho de volta e desistiram de sair do Brasil. Um grupo de cerca de 20 pessoas deixou a ponte na sexta-feira (19) e seguiu para a capital do Acre, Rio Branco, tendo São Paulo como destino final.
“Por pior que esteja a situação dos migrantes nas cidades de origem em que estão residindo, ao menos nelas é possível conseguir algum bico pra prover o sustento. Assis Brasil oferece zero empregos, sem falar nos riscos de Covid-19 nos abrigos. Estamos tentando divulgar pros grupos de migrantes que a fronteira não está aberta e que esse não é o melhor momento para tentar sair do Brasil”, explica a defensora pública Larissa Moisés, que integrou uma comitiva da DPU que conheceu de perto a situação na fronteira com o Peru.
A Defensoria relata haver imigrantes que tentam driblar o fechamento da fronteira peruana com a ajuda de coiotes. No entanto, a fiscalização peruana tem conseguido impedir a entrada da maioria dos que se arriscam por essa opção, além de usar a força para impedir travessias por meio da ponte. Quem tenta fazer o mesmo por meio da fronteira com a Bolívia também não tem obtido sucesso.
O próprio estado do Acre vivem um momento delicado em meio à questão migratória. A estação chuvosa tem sido mais intensa que o normal, causando transbordamento de rios e enchentes em todo o estado. A pandemia também alcança patamares cada vez mais altos, inclusive em Assis Brasil. O estado já contabiliza ao menos 55 mil casos do vírus, com 975 mortes, de acordo com a Secretaria Estadual de Saúde.
Diante desse cenário, o prefeito de Assis Brasil, Jerry Correia (PT), decretou estado de calamidade pública no município e pede constantemente por ajuda do governo federal para resolver a questão.
“Pedimos que o MPE e MPF se posicionem a respeito da crise humanitária que vivemos aqui. Eu pergunto: é humanitário permitir que crianças e mulheres grávidas fiquem por dias em uma ponte debaixo de sol e chuva? Esta prefeitura não deixou de assistir essas pessoas em nenhum momento. Mesmo no limite de nossas condições temos garantido água, comida, abrigo e atendimento médico. Chegamos a fornecer 1.500 refeições por dia. É uma situação de guerra que foge totalmente da nossa capacidade de gerenciamento. Estamos pedindo socorro”, afirmou o prefeito em mensagem compartilhada com grupos da sociedade civil que atuam no Acre.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) até esteve no Acre na última quarta-feira (24), mas sequer passou perto da região de fronteira. A medida federal mais efetiva até o momento foi a autorização do uso da Força Nacional de Segurança Pública no Acre.
A portaria, assinada pelo Ministério da Justiça em 17 de fevereiro, vale por 60 dias e estabelece que o efetivo deve auxiliar “nas atividades de bloqueio excepcional e temporário de entrada no país de estrangeiros, em caráter episódico e planejado”.
O efetivo de 12 militares já se juntou a policiais federais, agentes do batalhão de choque da Polícia Militar e do Grupo Especial de Fronteiras (Gefron) que atuam na região.
Por meio de nota, o Ministério das Relações Exteriores informou que tem mantido contato com as autoridades peruanas sobre a questão, e confirmou que o fechamento da fronteira é motivado pela pandemia de novo coronavírus.
O governo peruano, por sua vez, diz que estuda uma forma para liberar a passagem dos imigrantes pelo território, mas que por enquanto a fronteira não será liberada.
Resolver a questão da fronteira virou uma espécie de “pergunta de um milhão de dólares”, segundo a defensora. “Eu e várias pessoas da comitiva nos perguntamos isso o dia todo no tempo que estivemos lá”.
A Caritas e a Pastoral do Migrante informam que mantêm “diálogo constante com as lideranças dos imigrantes para minimizar o impacto negativo, assistindo as suas necessidades: alimentação, medicamento, kits de higiene pessoal e coletiva na medida do possível.
O Acre ficou conhecido na última década como ponto de entrada no Brasil da migração haitiana, especialmente entre 2010 e 2015. Nos anos seguintes, o estado se consolidou como um local de passagem de imigrantes: tanto são verificados aqueles que deixam o Brasil para outros países quanto outros que fazem o caminho inverso, de ingressar no território brasileiro.
Em meados de 2020, ganhou destaque a situação vivida por imigrantes, em sua maioria venezuelanos, que acamparam sob chuva e sol na ponte que liga Peru e Brasil, na esperança de solicitar refúgio em território brasileiro.
A situação na fronteira mobilizou entidades da sociedade civil e a Defensoria Pública da União, que protocolaram ações junto à Justiça brasileira em favor dos imigrantes. Um tipo de ação que não é possível no atual contexto, uma vez que o desejo do grupo em Assis Brasil é de ingressar no Peru para seguir viagem pelo continente.
Para Letícia Mamed, professora de Teoria Social/Sociologia da Universidade Federal do Acre (UFAC), esse contexto reforça a necessidade de se pensar em uma estrutura permanente no estado que atenda aos desafios trazidos pela temática migratória.
“É preciso suplantar a tendência a uma atuação emergencial, que lida com o problema de modo circunstancial, para encarar o desafio de pensar e desenvolver uma política ativa e realista ao contexto do Acre, em conformidade com o seu atual posicionamento nas rotas internacionais de migração”.
A pesquisadora também critica o caráter seletivo adotado pelos governos nacionais – tanto o brasileiro quanto o peruano – quanto à admissão de pessoas de outros países. Ambos têm adotado medidas restritivas à mobilidade humana em entradas por via terrestre ou aquaviária, mas flexibilizam o acesso por via aérea, que tende a ser usado por pessoas mais abastadas.
“Isso evidencia, portanto, o tratamento diferenciado e seletivo dispensado pelos governos aos imigrantes: aos empobrecidos, oriundos da América Latina, Caribe e África, majoritariamente negros, a política assume caráter restritivo e repressivo; aos abastados, provenientes dos países considerados desenvolvidos, a política é ampla e condescendente, capaz de implementar procedimentos que conciliam as preocupações sanitárias e a preservação do direito humano à mobilidade”, analisa.
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