Esta pesquisa, realizada na Universidade de São Paulo, investiga a organização política de populações ameríndias no Chaco paraguaio e no Pantanal. Para isso, o trabalho recorre a reflexões da etnologia, à documentação colonial e às etnografias.
Entre as conclusões, a pesquisadora destaca que certas noções vinculadas à noção de hierarquia - como a de sociedade, trabalho e gênero - fazem parte de um aparato conceitual desenvolvido em um contexto colonialista e não se encaixam na realidade dos Eyiguayegui.
Aque pergunta a pesquisa responde?
Os Eyiguayegui foram descritos, desde o século 16, como povos fortemente hierarquizados. Segundo a maior parte dos relatos históricos, suas tolderias (habitações chaquenhas) eram divididas em três “estratos”: as dos senhores nobres, dos servos e dos escravos. Porém, as próprias descrições relativizam essa afirmação, mostrando escravos tratados com carinho, que não eram obrigados ao trabalho, servos voluntários, capitães que não comandavam e estatutos hereditários estabelecidos à força do caráter e das habilidades. Ou seja, ao mesmo tempo em que a estratificação social eyiguayegui era entendida como análoga à da Europa feudal, descrevia-se escravos que podiam ascender até mesmo à posição de nobre, o que aparece como uma grande contradição.O principal objetivo da pesquisa foi o de olhar criticamente os dados trazidos pelas fontes históricas sobre aquelas populações indígenas do ponto de vista europeu, que fundamentava suas interpretações. Meu esforço foi o de seguir as narrativas nelas presentes de modo a esmiuçar a construção de um regime epistêmico que lê as relações eyiguayegui como baseadas em uma hierarquia e em uma separação entre o “doméstico” e o “político”.
Por que isso é relevante?
A dissertação pretende contribuir com um esforço mais amplo de revisão do que tem sido comumente identificado como as “formas políticas ameríndias”, ou seja, as diversas maneiras de organização política das populações indígenas sul-americanas. O estudo dessas diferentes formas é extremamente importante para que se possa conhecer políticas que, diferentemente da nossa, não estão baseadas em ideias de representação e de autoridade.
É conhecida, no âmbito da literatura americanista, a afirmação (feita primeiramente pelo francês Pierre Clastres) de que as sociedades ameríndias são “contra o Estado”. Segundo o autor, os chefes indígenas são o oposto dos nossos: eles não exercem nenhum poder sobre seu grupo e não podem obrigar ninguém a nada. Na realidade, eles são praticamente prisioneiros de seus grupos, precisando, a todo o momento, manter a harmonia da comunidade para mantê-la unida. Assim, a pesquisa se enquadra no esforço de entender as características particulares das políticas ameríndias no contexto do Chaco paraguaio e do Pantanal mato-grossense. Além disso, o trabalho é também um avanço no estudo acerca das relações de gênero entre os povos indígenas sul-americanos.
Resumo da pesquisa
A dissertação trata de explorar os desafios colocados pela suposta hierarquia dos Eyiguayegui (conhecidos também como Kadiwéu): escravos tratados com carinho e que não são obrigados ao trabalho, servos voluntários, populações tributárias que recebem presentes de seus senhores, capitães que não comandam, estatutos hereditários que se ganha ou se perde à força do caráter e das habilidades, mulheres guerreiras, homens cantores e uma estratificação social aparentemente em tudo análoga à da Europa feudal, mas na qual até escravos podiam ascender à posição de nobre ou de capitão. Partindo desse panorama construído pela literatura especializada, o trabalho analisa, à luz das reflexões atuais da etnologia americanista, os dados trazidos pela documentação colonial e pelas etnografias de modo a esmiuçar (e questionar) a construção de um regime epistêmico que lê as relações Eyiguayegui/Kadiwéu como baseadas em uma hierarquia, em uma separação entre o “doméstico” e o “político” e uma polarização entre o masculino e o feminino.
Quais foram as conclusões?
A decomposição do aparato colonial que permeia as descrições histórias permitiu enxergar, no lugar do que geralmente se denomina “hierarquia eyiguayegui”, processos de aparentamento entre “senhores” e “escravos” e várias formas de troca com outras populações. A dissertação destaca também o fato de que, para avançar nos estudos acerca dos elementos de diferenciação eyiguayegui, é necessário partir do pressuposto de que não sabemos, afinal, o que é uma mulher ou um homem eyiguayegui, um “escravo” ou um “nobre”. Por fim, a pesquisa apresenta o papel importantíssimo das mulheres nas políticas ameríndias. Essa importância, que atravessa os séculos, tem se mostrado cada vez mais, com a candidatura de Sônia Guajajara à vice-presidência da República, e em diversas manifestações atuais, como o Acampamento Terra Livre, protagonizadas pelas mulheres indígenas.
O conhecimento de outras formas de se pensar e fazer política é importante para todos aqueles que procuram refletir acerca de novas maneiras de organização. Aprender com as filosofias ameríndias, portanto, não é uma tarefa restrita a nenhum grupo, assim como leitura desta dissertação. Porém, as reflexões trazidas pela pesquisa podem ser úteis principalmente a quem procura conhecer as histórias de mulheres que foram propositalmente apagadas de nossos livros e memórias. Esse conhecimento, sabemos, pode ajudar a fortalecer os movimentos atuais feministas e de mulheres indígenas.
Quem deveria conhecer seus resultados?
Gabriela de Carvalho Freire é mestra em antropologia social pela Universidade de São Paulo. É pesquisadora do Centro de Estudos Ameríndios da USP e desenvolve, atualmente, pesquisa sobre formas políticas ameríndias e relações de gênero entre os povos indígenas. Tem formação em ciências sociais também pela USP.
Fonte: Nexo Jornal
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