Neste mês de maio, comemoramos os 450 anos de nascimento do compositor cremonense Claudio Giovanni Antonio Monteverdi (1567-1643), o primeiro grande nome da história da ópera.
E não se trata apenas uma curiosidade histórica, mas um excepcional dramaturgo cujas criações, encenadas hoje, continuam perfeitamente capazes de capturar a atenção do espectador moderno. Herdeiro dos grandes madrigalistas, visionário da nova arte, Monteverdi é um dos maiores reformadores da música.
E não se trata apenas uma curiosidade histórica, mas um excepcional dramaturgo cujas criações, encenadas hoje, continuam perfeitamente capazes de capturar a atenção do espectador moderno. Herdeiro dos grandes madrigalistas, visionário da nova arte, Monteverdi é um dos maiores reformadores da música.
Nas primeiras décadas do século XVII, Monteverdi desenvolveu a linguagem de seus dramas musicais através da integração do novo canto falado aos seus sólidos conhecimentos e experiência das técnicas contrapontísticas tradicionais. Sua primeira ópera, L’Orfeo (indicada em 15 óperas para ouvir antes de morrer), foi a primeira obra neste novo gênero e, até então, a maior conquista do novo estilo. Com ela, canto falado ou recitativo, concebido e experimentado pelos membros da Camerata Florentina, ganhou uma nova profundidade musical. A palavra tornou-se senhora absoluta, a quem a música deveria servir, algo que teria reflexo na história da ópera séculos depois. A tradução rítmica e harmônica, juntamente com a condução melódica-declamatória, adquiriram independência e valor próprios, resultando daí uma interpretação musical do texto: uma linguagem sonora integralmente nova, inaudita até então. Uma verdadeira revolução da música.
L’Orfeo (1607) é a primeira ópera na qual a poesia – de acordo com as novas ideias – ocupa o primeiro plano, mas onde a música é simultaneamente empregada de modo pleno, em toda a sua riqueza formal. Nesta primeira ópera de Monteverdi, que era um respeitado compositor de madrigais quando a compôs, já se encontram anunciadas ou pressentidas inúmeras formas e técnicas que surgiriam na ópera durante os séculos seguintes, em especial: a ária (inclusive do tipo da capo, como “Vi ricorda, o boschi ombrosi”), a importância dos coros, a canção estrófica, diversos motivos condutores (Leitmotive), uma instrumentação dramaticamente inspirada (evolução dos intermedii do Renascimento) e, naturalmente, o recitativo. Em que pese o fato de Monteverdi não ter sido o criador destas formas, ele as integrou de tal modo à tradição, que desenvolveu um estilo completamente novo.
Monteverdi: Tocata e Prólogo (L’Orfeo)
Esta primeira ópera de Monteverdi, que pode ser tranquilamente considerada como a primeira ópera verdadeira da história, engloba, a par do recém-descoberto canto falado dramático, um bom número de elementos tradicionais do Renascimento, sobretudo as danças e os madrigais. Aqui, no limiar do Barroco musical, o antigo e o novo estilo se mesclam (prima e seconda prattica). A recém-descoberta monodia foi elevada por Monteverdi a um máximo de intensidade expressiva. Ao realizá-lo, ele rompeu sem inibições, alguns dos tabus da teoria e da harmonia, “a serviço da verdade” – como ele próprio afirmou em um debate.
L’Orfeo de Monteverdi é a primeira obra planejada para preencher o programa de todo um serão, o que causou verdadeira sensação. Ela ultrapassa de longe tudo o que antes fora tentado no mesmo gênero. Até aquele momento, somente a poesia lírica fora musicada. Os madrigais assim criados duravam no máximo de dois e quatro minutos (vídeo abaixo). Eis que Monteverdi compõe um poema pastoral – uma fábula que ele próprio batiza de favola in musica – um drama com duração de 3/4 de hora em sua versão recitada e uma e meia quando cantado. Com isto ele impôs a si mesmo uma tarefa inédita: descobrir como dar coerência a uma peça com elementos tão diversos, por meio de uma nova forma. Era preciso estabelecer inter-relações em temos dramáticos e musicais, unindo-as por meio de equivalências de andamentos. A ópera é integralmente construída sobre um andamento básico do qual derivam os andamentos de cada uma das pequenas cenas. Estas relações são tão naturais que dão ao ouvinte a impressão de unidade e coerência numa obra completamente orgânica.
Monteverdi: Lamento della ninfa (Madrigais, Livro VIII)
L’Orfeo chegou até nós na forma de uma partitura impressa sob a supervisão de Monteverdi. Ele fornece, no início da partitura, uma lista com 31 instrumentos relacionados. O conjunto de cordas de L’Orfeo é o mais elaborado de todas as obras de Monteverdi: violinos piccolo (afinados uma terça ou uma quarta acima dos violinos comuns), violas, violoncelos (que Monteverdi chama de viola da brazzo, para sublinhar o seu parentesco com a família dos violinos e não das violas da gamba).
Monteverdi, talvez por ser ele próprio violinista, foi o primeiro a renunciar à predominância dos instrumentos de sopro, privilegiando as cordas, na orquestra dos primórdios do Barroco. Esta é exatamente a orquestra que Monteverdi emprega em suas Vésperas da Virgem Maria (1610), fazendo com que todos os instrumentos toquem, já no coro inicial “Domine ad adjuvandum me festina” (vídeo a seguir), quase que a mesma independente – ou Tocata, como a chama na ópera – do início de L’Orfeo (primeiro vídeo, acima). Este paralelo entre a ópera e a música sacra ultrapassa todos os aspectos estilísticos e sonoros: Monteverdi, em suas Vésperas, não só introduz pela primeira vez o estilo da ópera na igreja, mas a própria orquestra de ópera, representando-a em todo o seu esplendor.
Monteverdi: “Domine ad adjuvandum me festina” (Vesperis in Festis Beata Mariae Vergine)
Nikolaus Harnoncourt (1929-2016), em sua obra O discurso dos sons (1998), afirma que um recurso de expressão que a música clássica retomou do Barroco é o das notas repetidas e que, na música antiga (anterior a 1600), elas só se encontram para descrever ruídos e para dividir um som em sílabas. A nota repetida, segundo o maestro, é uma invenção de Monteverdi que introduz, no Combattimento di Tancredi e Clorinda (1624), pela primeira vez, a divisão de uma semibreve em 16 valores menores, visando com isto exprimir a violência do sentimento de cólera. Disse Monteverdi:
Como não consegui encontrar na música dos compositores antigos nenhum exemplo capaz de exprimir o estado da alma agitado… e como sei que o que mais emociona a nossa alma são os contrastes, objetivo que a música também deve procurar atingir… comecei a pesquisar com todas as minhas forças a forma de expressão agitada… encontrei na descrição do combate entre Tancredo e Clorinda os contrastes que me pareceram mais apropriados para serem traduzidos em música: a guerra, a prece, a morte. Explorei, então, os tempi rápidos, aqueles que nascem num agitado clima de guerra, opinião com que concordam os melhores filósofos… e encontrei o efeito que procurava dividindo a semibreve em semicolcheias que se ataca separadamente, sob um texto que exprime a cólera.
Esta possibilidade que Monteverdi descobriu para exprimir os sentimentos de agitação extrema, ele a chamou stile concitato. A partir daí as notas repetidas serão usadas para obter efeitos particulares que, na maioria das vezes, tem algo a ver com a ideia original do mestre.
Partitura de Il Combattimento di Tancredi e Clorinda, trazendo a cena da guerra comentada acima, ao final:
Il ritorno d’Ulisse in pátria, a primeira ópera de Monteverdi para os novos teatros públicos de Veneza, estreou quando ele já tinha 73 anos. Ainda assim, ele se adaptava ao gosto do público, introduzindo figuras cômicas, como o glutão Iro, e efeitos cênicos, como os da aparição da deusa Minerva no céu. Três anos mais tarde estreou, na mesma cidade, L’incoronazione de Poppea (1643), passada na alcova da amante do imperador Nero, que anuncia o bel canto (vídeo a seguir). É outra obra-prima de Monteverdi que traz mais um pioneirismo: é a primeira ópera a se inspirar num tema histórico, e não na mitologia.
Monteverdi: “Pur ti miro, pur ti godo” (L’incoronazione de Poppea)
Poppea pertence totalmente ao futuro e pode ser considerada o primeiro drama lírico da história da música. De suas 18 óperas, 12 desapareceram em 1630, durante o saque de Mântua (entre as quais Arianna, a ópera-bufa La finta pazza Licori e Armida, cuja importância ressalta da correspondência de Monteverdi). O mestre, que se tornou sacerdote, passou seus últimos anos revisando suas primeiras obras, concluindo seu tratado sobre a seconda prattica e compondo música nova. Seu último livro livro de madrigais foi publicado postumamente em 1651.
Prima prattica (os quatro primeiros livros de Madrigais e duas Missas), com a exploração de todas as possibilidades do estilo polifônico tradicional;Numa tentativa de agrupar a obra de Monteverdi, podemos distinguir três estilos no seu legado. São eles, empregando sua própria terminologia:
- Seconda prattica (Madrigais, Livros V e VI, L’Orfeo, Vésperas), em que se ressalta o princípio revolucionário da subordinação da música ao texto poético, que cria uma ruptura com as regras complexas da polifonia tradicional e exige a criação de um estilo melódico novo, utilização do baixo contínuo nos madrigais, suntuosidade da instrumentação nas obras para teatro ou para igreja;
- Stile concitato (Madrigais, Livros VII e VIII, últimas óperas), que consagra o triunfo da melodia acompanhada, com instrumentação, ao mesmo tempo, sóbria e mais sutil, a melodia, mais leve, “imita” mais perfeitamente os sentimentos.
São muitas as inovações assinadas por Monteverdi e, mais do que qualquer outro mestre da música, ele definiu a transição do estilo renascentista para o barroco. Era o compositor mais importante e influente de sua época. Sua obra marcou o início de uma nova era, e muita da riqueza de sua música deslumbrante ainda está por ser revelado. Todas as homenagens a esse grande artista são merecidas. Comemoremos 2017 como o Ano Monteverdi.
Fonte: Euterpe
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