A ideia bonita e gratificante de que, no Brasil, praia é lugar democrático por excelência, onde classes e raças se misturam harmoniosamente, sofreu dias atrás um contundente revés. Aconteceu em Ipanema, a orla mais badalada e rica do País, celebrada por poetas, músicos e turistas, o que torna o incidente, ainda que pequeno, bastante significativo.
Tudo começou por culpa do altinho, um jogo de praia muito apreciado pelos jovens. O jogo consiste em passar a bola, com o pé ou a cabeça, aos companheiros(as) em roda, sem deixá-la cair na areia. Em suma: embaixadinha de grupo. Acontece que, respondendo a numerosas queixas dos banhistas, a prefeitura proibiu, faz anos, o altinho e o frescobol das 8 até as 17 horas na beira d’água, onde essas práticas exuberantes de uma minoria comprometiam, de fato, o conforto e a segurança da maioria praieira.
O desafio repetido à proibição por parte de um grupo, numa terça-feira de sol, foi seguido de pesados xingamentos à Guarda Municipal, e da ação/reação desmedida desta, transformando o “mítico” Posto 9 em uma espécie de campo de batalha entre gangues rivais. Depois do ataque verbal de um banhista arrogante, os guardas partiram para a violência física “engravatando” o rebelde. Como faísca na gasolina, tal ação desencadeou a reação descontrolada de centenas de banhistas que, com furor digno de outras batalhas, reagiram e enfrentaram as forças públicas com o lançamento de cocos, cadeiras e guarda-sóis, obrigando-as à retirada. Os insultos repetidos de alguns banhistas contra os guardas, agora na calçada, resultaram em um ataque com cassetetes, particularmente raivoso, contra um jovem jogado na areia. Seguiram-se novos insultos de banhistas, dedo em riste, enfrentando os guardas por intermináveis minutos, até que a tensão, finalmente, baixou.
Não é o caso de entrar em mais detalhes desta crônica sobre a qual os interessados podem encontrar documentação abundante na internet e no YouTube. Acredito que vale a pena refletir sobre o que aconteceu em Ipanema, porque, ao contrário das interpretações folclóricas difundidas pela mídia, o episódio, aparentemente farsesco, na realidade esconde sérios dramas e contradições sociais.
A mentalidade de quem identifica a proibição do altinho como “falta de liberdade”, “autoritarismo” ou “repressão do esporte por parte dos guardas” representa, no mínimo, uma lacuna grave de educação cívica. Deveria ser ensinado nas escolas que a convivência civil supõe que a liberdade individual não seja ilimitada, mas esteja circunscrita aos limites traçados pelos direitos dos outros. Do mesmo modo, os guardas, chamados pelo Estado, ou seja, por nós, a zelar por respeito às leis, não podem ser definidos com tanta superficialidade como repressores pelo simples fato de tentar impor a legalidade. Considerando que a polícia carioca está entre as mais mal pagas do Brasil, resulta quase patético o apelo de certos sábios por um melhor treinamento e profissionalismo. Mais construtivo seria, talvez, ao lado disso, reivindicar maiores financiamentos para a Segurança.
O fato de que uma força pública, de extração social humilde, presida a praia de Ipanema, como nenhum outro lugar do País, para garantir segurança aos banhistas sete dias por semana, confesso que suscita em mim uma instintiva simpatia por ela, a parte mais fraca. É evidente que qualquer forma de violência desnecessária pela força pública é inaceitável, mas me atrevo a dizer que esses homens mereceriam outro tratamento dos cidadãos beneficiados. Não só: acho que seria honesto refletir sobre o diferente deslocamento das forças públicas nos bairros da cidade. Não será difícil, assim, chegar à conclusão de que vivemos em uma situação em que os cidadãos não recebem, todos, a mesma proteção.
Ao mesmo tempo, não posso esquecer que a polícia do Rio não é só aquela que mais morre, mas é também aquela que mais mata no Brasil: é filha de uma cultura de violência e prepotência, na qual foi historicamente treinada, em uma sociedade que continua sendo, pelo visto, profundamente autoritária e desigual.
De volta aos acontecimentos da praia carioca, é certo que, antes da pancadaria, a tensão começou com a frase “sou filho de juiz”, por parte de um jovem jogador, e explodiu depois com outros iluminantes epítetos, como: “Ipanema é nossa, bando de fodidos”. Essas frases estão gravadas e, além de atestar a confusão mental daqueles que as pronunciaram, são incontestável expressão de uma mentalidade mais ampla, que se expressou plasticamente na fúria anarcoide dos banhistas combatentes. É a cultura da diferença – de classe e de raça – que separa o nós e os outros, os privilegiados e os discriminados. Não somente nas praias, mas nas consciências. É dramaticamente essa condição, como se o pai Brasil tivesse filhos e bastardos.
Fonte texto: A Carta Capital
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