No alto da Serra do Espinhaço, em plena transição da mata atlântica para o cerrado, fica o pequeno vilarejo de Milho Verde, vulgo intitulado Amsterdã do Cerrado, distrito do município do Serro.
Esta parte do Alto Jequitinhonha, muito próxima de onde nasce o rio, é conhecida pela aridez, extrema pobreza e estonteante beleza natural.
Esta parte do Alto Jequitinhonha, muito próxima de onde nasce o rio, é conhecida pela aridez, extrema pobreza e estonteante beleza natural.
O desavisado viajante logo se entorpece com os eflúvios que emanam do contraste entre o casario antigo e o paredão de pedra. Embasbacado, o turista fotografa a igreja imortalizada no encarte do disco do Milton Nascimento e faz selfie com o azul metálico do Espinhaço ao fundo. Jipeiros, mochileiros, motociclistas – todos ficam pra lá de Marrakech quando estão em Milho Verde, povoado cujos 1.300 habitantes (segundo o censo de 2010) resistem bravamente à gentrificação, sushis, espetinhos, airbnbs e congêneres, dado o isolamento geográfico que proporcionou o surgimento de uma sociedade tradicionalista e alheia a tudo o que na vida é porosidade e comunicação. Todo o estado de Minas foi conquistado pela Drogaria Araújo, exceção feita a esta pequena e inexpugnável aldeia gaulesa do sertão.
As ruas de terra levam turistas, cães sarnentos e redemoinhos nos rumos do Lajeado, paraíso de lagoas escuras rodeadas de areia branca. Quando anoitece, o céu se enfastia de tantas estrelas, que os incautos backpackers insistem em tentar fotografar, conluiando as lentes presunçosas do Iphone com o brilho químico que derrete no palato. Milho Verde, a Amsterdã do Cerrado, com suas energias cósmicas, benzedeiras ancestrais e vaqueiros roseanos que transmitem aos visitantes a sensação mística de adentrar o sertão profundo sem a chancela caucasiana e dolarizada da Trip Advisor.
A partir da lei provincial nº 830, de 11-07-1857, Milho Verde, povoação setecentista, foi elevada a distrito e assim oficialmente anexada ao município do Serro. O vilarejo, porém, foi mais uma vez colonizado nos idos de 1970, quando caminhões, kombis e fuscas trouxeram os primeiros hippies que se instalaram no local para fazer artesanato, beber infusões mágicas e trepar nas águas claras da cachoeira.
Todavia, lá pela quinta ou sexta visita da reportagem ao vilarejo, o engano se enganou e o que era Guimarães Rosa se transformou em Lúcio Cardoso. Depois de muito futucar a tuia dos segredos e comer pelas beiradas da prosa, a reportagem de O Beltrano colheu inconfidências à boca miúda e descobriu um catálogo de horrores – chacinas, coquetéis molotov, invasões de terra, desvio de verbas públicas, prostituição, crack, grilagem e até mesmo uma insólita criação de búfalos na fina areia do Lajeado.
Milho Verde é, antes de tudo, uma terra de coronéis. Segundo as más línguas, estes se dividem por extratos socioeconômicos bem definidos – o coronel dos hippies, o coronel das terras, o coronel dos nativos e o coronel das drogas. E como coronéis que são, ditam regras, limites e comportamentos. Cachorros que mataram galinhas foram degolados, mulheres que reivindicaram pensão alimentícia foram picotadas a golpes de foice e moradores que desobedeceram ordens foram atacados com bombas caseiras. Isso mesmo, coquetéis molotov na árcade Milho Verde.
Considerando que eu não tenho um bom dentista, nem mesmo um bom advogado, evitarei revelar fontes ou nomes neste relato. Cabe ao leitor dimensionar a verossimilhança dos episódios citados, considerando que tudo é verdade no universo da ficção. Tomemos, então, um significativo exemplo da hospitalidade milhoverdense e atilemos para o causo protagonizado por Zé Maria (nome fictício), um xangô acelerado que trabalha como representante comercial do produto químico cujo consumo sistemático provoca no usuário o desejo de revelar segredos e fazer confissões. Certa vez, diante de um incauto viajante paulista que esparrava sua bandidagem e periculosidade num bar do vilarejo, e se declarava membro do Partido (1533 ou PCC para os íntimos), Zé Maria orientou o forasteiro de maneira firme e acolhedora: “Eu sei que cê é do crime, zim. Sei que o sinhô é vida loca. Mas aqui fica longe, sabe? Aqui é ruim de chegar, sô. Até seus amigos resgatarem você… sabe como é…demora né… muita coisa pode acontecer…”
A reportagem não conseguiu levantar o paradeiro do turista advertido, mas foi possível averiguar que o vilarejo, de fato, não se intimida frente a turistas abusados. Presenciamos um grupo de jovens musculosos e depilados, que se aventurou a ouvir música automotiva e desistiu imediatamente do intento após ouvir uma única e breve recomendação de Almir (nome fictício), o coronel dos nativos: “Aqui não gostamos de música alta. Espero que os amigos tenham entendido e que não precise voltar aqui.”
Então, meu caro viajante, keep calm and desfrute Milho Verde… Caminhe, escute, observe. Perceba a assombrosa torre de telefonia celular irradiando seu veneno ao lado da famosa igreja do disco do Bituca ao mesmo tempo em que judia do landscape. Talvez essa abjeta estrutura assassina seja o derradeiro moinho de vento que Van Gogh não logrou pintar. Perceba também que bem perto dali, em um bar de localização precisamente desconhecida, uma moça do Serro oferece sensualidades aos viajantes por apenas 50 reais, dos quais 30 ficam para o dono do estabelecimento. Talvez seja aqui o tal Distrito da Luz Vermelha, vá saber? Afinal de contas, com seus turistas embasbacados, seus crimes de armas brancas, sua ambição feroz e seus caboclos alucinados na beleza da paisagem, Milho Verde, feliz ou infelizmente, faz juz ao epíteto de Amsterdã do Cerrado.
Fonte: O Beltrano
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